segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Hallellujah

Eu estava levantando da cadeira estofada da igreja e esperando todos saírem. Não sei se era pra não me aglomerar ou se era simplesmente para ficar só uns momentos sozinho.
Eu tentava manter a cabeça erguida, e cerrava os olhos para não, de jeito nenhum, olhar para onde ele dormia agora. Com os olhos fechados pro mundo, todas as lembranças voltaram e quando me dei conta, estava de joelhos, com as mãos cravadas nos ouvidos, os dentes rangendo.
Tudo voltando como um tufão em minha mente.
Eu lembrei de quando ele caiu do skate e detonou o joelho e rimos sentados vários minutos; lembrei que eu tomei aquele copo de gordura oleosa porque perdi na aposta que ele conseguiria beijar a Clary antes das aulas terminarem; lembrei também quando ele voltou detonado de bebida pra minha casa, todo ensanguentado de briga de bar, e eu o coloquei pra dormir no sofá e a Tia Dovanne (mãe dele) quase acaba com nós dois.
Isso parecia tão longe agora, distante, como se não tivesse sido a 2 anos que recebemos a notícia.
Ele sumiu por 1 dia inteiro depois que saíram do hospital. Eu era o único que sabia onde ele estava, mas se foi pra lá e não disse nada, é porque queria ficar sozinho, e fui seu álibi para esconder da namorada, Penélope, que quase me pendurou pra falar onde ele tinha ido.
As coisas ficaram complicadas gradualmente. Não dava mais pra andar de skate, porque ele tremia muito no shape, não dava mais pra fazer apostas, porque elas sempre envolviam coisas nojentas, e a alimentação dele estava sendo rigorosamente controlada, não dava mais pra cair na noite sem hora, porque alguma coisa poderia acontecer.
Não dava mais tempo.
Me lembro que o pior de todos os momentos foi quando estávamos andando pelo Central Park, tentando se despreocupar um pouco, deixando os problemas nas pegadas e ele parou e foi empurrado por várias pessoas até cair no chão e eu correr pra ajudar. Quando ele segurou no meu casaco com forca, mirando meu rosto, mas não encontrando meus olhos e disse com a voz tremendo: Greg... Eu não estou vendo vc. Confesso eu agradeci internamente um pouco, porque não queria que ele visse o quão fraco e patético que eu fui de começar a chorar quase no mesmo momento.
Levei-o pra casa e o médico veio. Disse que a cegueira era parte do processo de degeneração e infelizmente... A coisa não ia melhorar.
Cara... Porque vc? Entre todas as pessoas que mereciam morrer, vc estava longe da lista. Com certeza na lista negra dos meninos endiabrados do Papai Noel, mas não na lista do Criador de pessoas que tem ir antes da hora.
Porque vc, cara? 
A coisa pirou e eu sei, fui um retardado de ter me afastado, mas vê-lo daquele jeito, e não poder fazer merda nenhuma... Não dava. Fiquei longe por um tempo, me sentindo mal, mas tentando me colocar no lugar antes de ir vê-lo de novo. Foi quando recebi a mensagem: 'Seu retardado, filho da mãe, venha pra cá agora, to pouco me ferrando pro que tu ta fazendo.'
Corri o mais rápido que pude com a bicicleta velha de duas marchas. Sabia que não estava em casa e fui pro canto que a gente descobriu quando era mais novo. Larguei a bicicleta, subi correndo e é, ele estava lá, de pé, parecendo bem e saudável, tirando pela cara flácida e pálida, e os óculos de sol que eu sabia que não eram pelo sol que ele usava.
-Vagabundo. - ele disse e eu me fiquei do lado dele pra ver o nada que aquela visão do alto nos transmitia.
-E ai? Como ta indo? - eu deveria ter escolhido melhor as palavras.
-É cara... Eu to indo. - ele olhou pra mim suspirando.
Eu contrai e boca e tentei chorar como homem, como se fosse possível.
-Para com isso moleque, e me escuta: Não revela esse lugar pra ninguém, falou? Isso aqui e nosso cara, e mantenha em segredo, beleza? - eu sorri limpando as lágrimas e dei um soco no braço dele, o qual ele fingiu estar doendo e quando me desesperei, ele começou a rir muito.
A vida suga os momentos preciosos que a gente tem, alguns perdem o sentido com o tempo, mas os reais, não tem que fazer sentido.
-E mais uma coisa, antes que eu me esqueça... - ele começou quando nos sentamos.
Voltamos pra casa e tive que arrasta-lo no meio do caminho porque ele não aguentou chegar na porta.
Tia Dovanne gritou comigo e me empurrou pela porta a fora e foi a primeira vez que eu o ouvi manda-la calar a boca. Eu fui embora, não tinha como.
Alguns dias depois, tudo veio rápido demais. A ligação que na madrugada ele teve que correr pro hospital, só não me disseram o motivo ao certo, mas tanto faz. Cheguei algumas horas depois que me avisaram, e foi só pra ver a família chorando sem chão.
Foi ai que eu notei que ainda estava no chão da igreja, e todos já haviam saído, não sei a quanto tempo, mas nem o caixão estava mais lá. Acho que se passaram horas e me deixaram aqui sem conseguir me tirar do transe das memórias.
Apenas uma pessoa ficou lá me esperando.
Quando me ergui devagar encontrei os olhos mel de Penélope me encarando bem de perto, e ainda bem que parei perto dos bancos pra poder me segurar do soco muito forte que ela, provavelmente guardou por muito tempo pra me dar.
-vc é um merda! Um grande idiota sem coração! Como pode chegar atrasado no hospital? Vc nem quis falar nada na cerimonia, nem se deu ao trabalho de levar o caixão dele. E ainda se diz amigo dele? Vc é um ridículo, seu otário. - ela usou um vocabulário bem baixo para uma menininha de primeira classe.
Nunca vou entender porque vc namorava esse tipo de garota, mas ela te fez companhia em todos os momentos e ajudou muito sua mãe em tudo, dormindo por várias noites na sua casa para qualquer emergência. Ela era uma mulher de algumas formas.
As lágrimas escorreram pelos olhos, lavando a maquiagem dela. Eu ainda estava de cabeça baixa, zonzo pelo soco, a boca sangrando.
-Vc... Por que não se levantou só pra olhar pra ele e dizer que o amava? - disse ela, entre soluços.
Coloquei a mão no ombro dela, lambendo o sangue.
-Eu não preciso declarar isso pra todos se a pessoa que precisava ouvir, já sabia. - e foi tudo.
Sai da igreja, deixando ela para trás, com os punhos cerrados. Acho que ela ainda queria me bater mais.
Eu não fui pro enterro também, peguei a bicicleta e voltei pro lugar, o nosso.

-E mais uma coisa antes que eu me esqueça! Não fala no meu velório e nem ouse me olhar em um caixão, ou na cama do hospital nos últimos minutos, tá? Se vc se lembrar de mim como um morto, ai e que eu vou morrer mesmo. Greg, lembre de mim assim, de pé e... Vivo.
-Sabe que sua mãe e a Penélope vão me odiar pra sempre se eu fizer isso, né? 
-Eu sei... mas elas vão entender depois, com o tempo. Mas não fale pra elas, deixa entre a gente. Quando mais elas tentarem entender o que houve, pior será a despedida. Tu me promete?
Dei de ombros.
-Não posso te negar nada. Não por agora, mas por todo o resto.


Cheguei no lugar, subi ate onde estávamos naquele dia.
-Seu filho da mãe, vc não vai morrer.... vc está de pé, vivo. - as lágrimas caíram e vi o sol refletindo como em uma lente de óculos.
É.... vivo.

-by Elize Blackmore
(inspirada nas verdadeiras amizades masculinas que sempre me cativaram)

Um comentário:

  1. De uma densidade de mesmo valor que a carga emotiva. Costumo dizer que comédias e dramas são os temas mais complicados pra se escrever, pelo fato de serem extremos e normalmente opostos... Por isso, parabéns pela grandiosidade de um texto inteiro... Pujante... E ainda assim romântico.

    Boaaa garota. Tem um puta talento. :P

    ResponderExcluir