Agora, já era tarde demais. Já estava na delegacia com um corte na cabeça e vários arranhões profundos no braço porque minha amiga tinha dirigido 'um pouco bêbada', pelo menos era isso que ela tinha dito.
Pelo menos não batemos em ninguém. Ela estava 'animada' no volante e acabou batendo em uma arvore de tronco grosso na rua. Um transeunte viu o estrago e chamou a policia imediatamente.
Já sabem o roteiro né? Bafômetro, culpada e agora, delegacia. Nessas horas que eu queria ter carteira de motorista, mas eu no volante, não preciso estar bêbada pra fazer esse tipo de estrago, sério, até porque nunca bebi na vida e nem pretendo.
Estava sentada em um dos bancos da delegacia, com um curativo na cabeça e pressionando os que tinha no braço, enquanto minha amiga falava chorando com o pai ao telefone, tentando não ficar estérica.
Era uma sexta a noite e claro que o movimento dentro da delegacia estava intenso. Muitos acidentes e muitas pessoas pra prender, pagar fiança e discutir.
Eu já estava tomando coragem pra ligar para meu pai vir me pegar quando um policial entrou arrastando um garoto praticamente pelo colarinho da blusa, algemado, com o rosto machucado e um pouco de sangue na blusa.
Eu olhei de esguelha, tendo certeza que tinha sido mais uma briga de bar, de rua ou qualquer coisa.
Ele sentou no banco de madeira de frente para o meu, enquanto o policial ajudava a arrastar o outro garoto que se debatia e tentava ir para cima do que estava sentado.
-Vc é um idiota! Seu retardado, problemático, defeituoso do inferno! - o enfezado gritava para todos que quisessem ouvir dentro e fora da delegacia.
-Cale a boca seu moleque! Rogers, leve esse idiota pra cela, chega de briga por uma noite, céus! - disse o policial o empurrando e seu parceiro o arrastou para o corredor das celas.
Eu fingia olhar para o celular e mexer em qualquer coisa, enquanto ouvia o policial falando com o outro garoto e assistia de canto de olho.
-Se não quer acabar no xadrez também, fale seu nome e me fale onde está sua carteira pra eu pegar seu documento. - o policial estava agachado, olhando para ele.
O garoto estava com a cabeça baixa e respirava em um ritmo estranho e se contorcia bastante ao faze-lo.
-Vamos logo moleque! Ei, está me ouvindo? - o policial falou mais alto, pelo alvoroço que estava e deu um tapa leve no rosto do menino.
Ele tremeu, mas continuou do mesmo jeito, parecia concentrado em alguma coisa muito série.
-Não me faça perder a paciência com vc seu merdinha. - repetiu o policial, dando um tapa mais forte no garoto e pegando novamente no colarinho dele para olha-lo de frente.
Ele estava pálido, tinha olhos verdes e cabelo castanho claro arrepiado, um rosto que não negava que tinha no máximo 19 anos. O rosto avermelhado e com sangue nos cortes. Ele puxava o ar de fora pra dentro estranhamente, com o corpo tremendo todo ao fazer isso.
Ele não respondeu nada.
Eu parei de fingir mexer no celular e fiquei olhando para a cena dos dois descaradamente, tentando entender.
-Vá logo moleque, me diga seu nome. - o tira gritava na cara dele.
Nada.
Ele puxou o cassetete da cintura.
-Policial, pera ai, pega leve! - eu disse, levantando do banco e caminhando com passos largos até eles, erguendo minha mão para segura-lo.
-Não se envolve pirralha! - ele me afastou, ainda segurando o garoto.
De frente pra ele, finalmente consegui identificar o problema. Droga, porque demorei tanto?
-Tira as algemas dele. - disse, encarando o garoto.
-O que?
-Tira as algemas dele! - gritei.
-Garota, volte para seu banco, se não...
-Se vc não tirar ele vai morrer, tira logo! - eu encarei com firmeza o policial.
Ele me olhou de volta e sentiu a verdade no que eu estava dizendo, e soltou o garoto que afundou novamente no banco, como um boneco. Puxou a chaves e tirou as algemas.
O garoto jogou os braços pra frente e agarrou a blusa ensanguentada, puxando-a com força.
Eu me ajoelhei para ficar de frente com ele.
-Se acalma! Se vc não se acalmar vc não vai conseguir! Olha pra mim! Olha.... - eu dizia, sem tocar nele, tentando olhar nos olhos dele.
O desespero era claro, mas ele olhou pra mim.
-Ache um ritmo! Se vc não fizer isso, as coisas vão piorar! Tente puxar e soltar com mais força. - eu dizia, olhando pra ele o vendo batalhar.
-O que é isso? - o policial perguntou.
-Vcs tem algum remédio aqui? - eu disse.
-Claro que não! Não somos uma farmácia!
-Eu preciso de algum remédio, alguma coisa...
-Vc está de brincadeira né garota? Vc está de cena com esse moleque? Porque se estiver...
-Ele está tendo uma crise de Asma caramba! - eu gritei.
O policial se calou no meio da frase, entendo a situação, mas ficou quieto ali, parado.
-Se não vai fazer nada, então abre espaço. - disse, abanando a mão para sairem do arredor.
O tira começou a afastar todos que estavam muito perto. Nesse momento todos já nos encaravam e estavam em cima tentando ver o que estava acontecendo.
Ele ainda segurava a camisa com força, puxando e repuxando.
-Não vai adiantar fazer isso.... - disse baixinho, tentando pensar em algo melhor.
Tive uma idéia idiota, tinha visto em um filme uma vez... quem sabe funcionasse.
Tirei a mão dele da blusa e coloquei no meu colo, um pouco abaixo do pescoço. Ele me olhou, sem entender.
-Esta vendo meu ritmo? O ar entrando e saindo? Segue meu ritmo! - eu disse, olhando fixamente pra ele.
Ele estava com medo, então escorregou do banco e ficou sentado de frente pra mim, uma mão apoiada no chão e a outra em mim. Ele se concentrou em cada momento do meu ar e tentou copiar.
Ele suave e sofria com cada inspiração nova.
-Eu sei que dói! Mais tente, vamos! Vc consegue. - eu o incentivava.
Demorou uns longos minutos, mas enfim ele conseguiu o ritmo que precisava para não se desesperar e conseguir fazer aquilo sozinho. Tentei me afastar pra ajudar com espaço, mas ele me segurou para continuar me acompanhando. E eu deixei.
Minha amiga ligou para meu pai que chegou em minutos na delegacia, juntamente com o dela.
-Ally? Ally? - ouvi meu pai me chamando pela entrada da delegacia.
O garoto estava agora sentando ao meu lado no banco e eu massageava suas costas.
-Estou aqui! - eu disse, e já ouvi os passos pesados em minha direção.
-O que aconteceu? - ele disse, com um tom aliviado e nervoso ao mesmo tempo e eu levantei.
Ele olhou para o garoto, desconfiado.
-Ah não! Ele não tem nada a ver! Foi a Jordan! Saimos do PUB, ela insistiu em beber e acabou batendo o carro. - disse despreocupada e ele me abraçou com força e passou a mão nos machucados. - eu to bem!
-o que eu disse antes de vc sair de casa? - perguntou ele, sério.
-eu sei! eu sei... - disse com a cabeça baixa e ele me abraçou novamente.
Falamos um pouco e ele foi até o balcão falar com o policial para me liberar. Mesmo tendo 21 anos, se não moro sozinha e pago minhas contas, preciso de um adulto de verdade pra me ajudar nessas coisas.
Sentei novamente no banco.
-Obrigado. - o garoto finalmente suspirou com uma voz de menino.
-Tudo bem. Meu irmão tem Asma tb.... eu não sei qual é a dor, mas eu sofro junto. - disse, encarando o chão. -Foi por isso que o cara te chamou de defeituoso?
Ele afirmou, arfando ainda.
-Vc é louco de brigar com um cara desse jeito se tem Asma.
-Desse jeito? - ele deu um risinho.
-é... vc está todo quebrado e cortado... deve ter sido uma briga feia. Ele mexeu com sua namorada? - perguntei tentando adivinhar.
Ele rio abafado.
-Não... tava forçando uma garota a dar uma volta com ele. Eu tenho uma irmã, então não aguento ver esses caras se achando um máximo e tentando obriga-las a fazer algo. - disse, tomando fôlegos profundos.
Eu sorri.
-Não anda com sua bombinha no bolso?
-Eu levo sim, mas na briga ela caiu do meu bolso e não sei onde foi parar. Os guardas me levaram antes eu pudesse achar ela no chão.
-Ah... - disse baixinho.
Ele sabia das limitações dele, mas mesmo assim tentou proteger a garota desconhecida. Ok, não se acha isso em uma delegacia, eu acho pelo menos.
-Vc é justiceiro então?
-Não um dos bons, já que precisei de uma estranha pra me ajudar e parei na cadeia. - disse, com um sorriso.
-Alice Brockman. - estendi o braço. E ele apertou minha mão.
-Eddy Vinlardy.
-Agora já pode colocar no testamento seus agradecimentos especiais pra mim. - disse, sorrindo.
-Pode deixar! Vai ser o primeiro nome e vou deixar todo o meu estoque de remédios pro seu irmão. - respondeu, rindo e abaixando a cabeça de novo. Apenas essa pequena conversa já tinha tirado o folego dele.
-E... vc? O que houve? - Eddy perguntou depois de um tempo.
-Ah! PUB, bebida, amiga doida, arvore no caminho, bum! - disse, dando de ombros.
-Ah... ainda bem que não foi pior. - ele disse, parecendo mesmo aliviado.
Meu pai me chamou e me levantei do banco, pegando minha jaqueta que tinha jogado quando cheguei.
-Espero que nos encontremos em estados melhores depois. - ele disse, com a mão no peito, massageando os 'pulmões'.
-Sem arranhões, sem algemas e sem acidentes. - eu disse, acenando e indo ao encontro do meu pai.
Dentro do carro, indo pra casa, escutando meu pai falar um monte de como tinha que escolher meus amigos melhor, e de como tinha que tomar mais cuidado com meus horários e com tudo mais, tentei me enrolar no meu casaco, para abafar a voz dele. Sabia que merecia ouvir tudo aquilo, mas eu estava cansada já. Então, quando me enrolei no casaco, um pedaço amassado de papel caiu no meu colo e eu desdobrei.
"7925 611700 - Me liga para eu deixar meus remédios nominal pra seu irmão e quem sabe, sair de uma forma descente com salvadora do meu testamento.
P.S: leve uma bombinha, nunca se sabe."
Ele deve ter escrito enquanto falava com meu pai, provavelmente. Não importa.
As estranhas situações que muitas vezes a vida nos coloca. As vezes parecem muita má sorte, as vezes parece que tomamos todas as decisões erradas naquele dia, parece que não deveria ter saído da cama.
E as vezes, mas só as vezes mesmo.... fazer tudo isso, é o que leve vc a ser importante em um curto momento para uma pessoa, que estava no lugar errado e na hora errada também como você, mas foi isso que levou você a estar no lugar certo e na hora certa para salvar um Eddy a tomar folego e quem sabe agora ter a boa companhia que teria arrumado tudo desde o começo da história?
É... quem sabe. De qualquer forma, vou levar a bombinha.
- by Elize Blackmore
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